15 de novembro de 2008

Olhos do Abismo

Este artigo/crônica é de autoria do nosso amigo Roberto, freqüentador assíduo do Ecos Dissonantes. Está sendo publicado com atraso, era pra ser no período eleitoral, mas esse blogueiro aqui é meio lento. Leiam e comentem este belo e polêmico artigo.

Olhos do Abismo


À primeira vista, são personagens sazonais, temporárias; criaturas que vão embora com o fim das eleições. Livramo-nos da propaganda eleitoral, das urnas, dos candidatos, das musiquinhas e delas, tudo no mesmo pacote; tchau, saravá, até daqui a dois anos -por falta de escolha, e não de vontade. E viro o rosto para o outro lado.


Ao voltar os olhos para elas, porém -de relance que seja-, eu, míope de pensamento, as vejo como retrato amargo, desbotado, corroído. Fosse eu mais enfático emendaria "símbolos do nosso tempo", mas contenho-me -eu que flerto com o abismo. E se fosse mais desatento, encerraria o segundo parágrafo sem explicar de quem, afinal, estou falando; que personagens e retrato são esses que observo e gravo. Gravo a imagem das bandeiras dos candidatos balançando, movidas por braços finos; rostos queimados de sol e cobertos de suor, entregando folhetos sem fim; corpos moles, entediados e emburrados, aparando cartazes de políticos, fazendo mais as vezes de poste que de guardadores.


Poderia usar este terceiro parágrafo para cantar a miséria do povo submetido pela necessidade aos mais cruéis trabalhos, neste mundo selvagem e injusto. Depois descreveria o asfalto, o cheiro das ruas, as marcas dos anos e da pobreza no olhar e na pele. Depois, mandaria este texto para algum movimento social, ou para algum concurso literário de cunho realista, promovido por alguma ONG supostamente vinculada a causas populares.


O terceiro parágrafo acabou e, com ele, minha chance de participar do concurso. Pois não há cores de pobreza para serem pintadas. O que há e um rosto desbotado e sujo, de cuja boca sai uma saliva espessa que logo encontra o chão, e pernas que trabalham.


Mas este trabalho não dignifica -e nem o cuspe-e estas pessoas sabem disso. E, como não são burras, elas também sabem que se degradam a cada dia, física e moralmente. Sabem e, mesmo assim, continuam."É o fardo que o sistema lhes impõe"; "elas precisam sobreviver": estas frases estão na ponta da língua, e basta uma canetada minha para torná-las vítimas do cruel sistema, testemunhas de um crime que denunciam em seus olhares.
Olhar... Talvez em meu relance eu as tenha olhado por demais fundo nos olhos. Havia pessoas plenas ali, conscientes do que faziam, e não meras marionetes do "sistema". Olhar nos olhos delas me faz fugir um pouco das abstrações tão fáceis, genéricas e distantes: o ser humano, o brasileiro, o capitalismo... Olho e vejo pessoas; pessoas que raciocinam, atuam, fingem e escolhem. E a escolha delas não é entre agitar uma bandeira, guardar um cartaz, ou passar fome, deixar os filhos sem roupa; antes, aquele trabalho eleitoral gerará uma renda extra, para auxiliar a casa. "Extra": não se trata mais de questões de vida ou morte; adentramos no campo da escolha entre denegrir-se ou ficar sem o temporário bônus mensal.


Olhar nos olhos de alguém é sempre assustador: um abismo que se revela, que reflete para fora e projeta-se para dentro do corpo. Se não lhes foi forçado, pelo feroz sistema, o trabalho degradante -este é meu argumento-, se foi tudo uma escolha consciente entre o dinheiro e uma outra coisa que mancha, desgasta, então que moral é esta que reside no âmago destes corpos? Pois -repara bem-, enquanto nossos atos são impostos por fora, somos somente vítimas. Como pensar a questão se nos tomarmos como atores?


[corro para o espelho, para indagar meus próprios olhos]


Os pensamentos míopes de minha mente astigmática nublam meu horizonte de questões; entre a névia, pergunto-me: se não mais vítimas, então culpados? Mais turvação: como condenar ou combater uma moral que se apodera de corações e mentes, de todos, e pouco a pouco? Olho-me no espelho, vislumbro minhas rugas e abismos. Suo.



Roberto Bousquet

3 comentários:

Anônimo disse...

Eu acho o seguinte. Essas pessoas não tem escolha não. São vítimas da sociedade? Sim. Mas também são atores. O que estão fazendo é ganhar o extra sim, porque não? Talvez até o necessário. È degradante, mas qual subtrabalho não é? Trabalho no capitalismo é degradação + exploração. Sacanagem é permirtir isso ocorrer. Querer que mantenham sua integridade e dignidade é um pouco demais, pois isto lhes foi tirado há muito tempo. Mas o artigo está ótimo. Parabéns Robert

Sacripanta disse...

Eu acho que eu preciso de um publicitário, um marqueteiro feroz, tipo o Duda Mendonça mesmo, ou então aquele que fazia os comerciais da Sukita. Acho que só assim vão ler o que eu escrever.

Ou você acha que é questão de serem textos longos mesmo? Até meus comentários têm sido longos... devo escrever mais curto?

Anônimo disse...

roberto..ops..Sacripanta, que nada, seu texto foi lido sim, não teve foi comentários. Na verdade os anteriores tb não, os do guilherme teve pq a bixa passou a divulgar o blog ai entrou a familia dele pra comentar..ele gosta de ibope.

Vc tem estilo e é isso que importa, escreve bem pra cacete...

quanto ao escrever muito se as pessoas tem preguiça de ler é pq são analfabetas coitadas