27 de março de 2010

Verão, Outono, Tédio, Melancolia ...

Parece que março é o mês da poesia aqui neste enfermo blog, e relendo A fila sem fim dos demônios descontentes (Ed. 7 Letras, 2006), o livro de estréia de Bruna Beber (acho que já falei dela aqui), resolvi publicar duas belas poesias, que se tornaram relevantes nesta releitura. Bruna é uma das melhores poetas do cenário contemporâneo, sua poesia é delicada porém sem ser "pau mole” (não consegui achar termo melhor). O blog dela está linkado aqui desde o inicio.Eu indico com gosto.Bon Appetit


ap.

na minha casa você pode flagrar alguém
se escondendo da rotina num quarto escuro
e batendo a cinza do cigarro na janela
enquanto espia as roupas dançando em silêncio
no varal da área
às três da madrugada
você pode flagrar alguém preocupado
segurando uma caneca com vinho vagabundo
dormindo fora de hora
pensando demais na vida
E no tédio que é
Essa falta de paixão


GRACILIANO BEAT

vejo dragões bêbados
beliscando pipas agarradas
na roda- gigante imaginária
dos moinhos

ando arruinado
e louco
mas otimista

não fossem os vícios
e os códigos de defesa
do consumidor
eu diria que
estou farto de tudo.

espero o outono chegar
e enferrujar as árvores
pra eu andar chutando folhas
e não chutando lixo.

18 de março de 2010

Sobre a arte de ser

TRADUZIR-SE

Ferreira Gullar

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
alomoça e janta:
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
_ que é uma questão
de vida ou morte _
será arte

14 de março de 2010

3 em 1

Três obras primas em um vídeo:

Uma grande atuação
Um grande filme
Um grande poema





OS HOMENS OCOS (The Hollow Men - T.S. Eliot)

"A penny for the Old Guy"
(Um pêni para o Velho Guy)

Nós somos os homens ocos
Os homens empalhados
Uns nos outros amparados
O elmo cheio de nada. Ai de nós!
Nossas vozes dessecadas,
Quando juntos sussurramos,
São quietas e inexpressas
Como o vento na relva seca
Ou pés de ratos sobre cacos
Em nossa adega evaporada

Fôrma sem forma, sombra sem cor
Força paralisada, gesto sem vigor;

Aqueles que atravessaram
De olhos retos, para o outro reino da morte
Nos recordam - se o fazem - não como violentas
Almas danadas, mas apenas
Como os homens ocos
Os homens empalhados.

II

Os olhos que temo encontrar em sonhos
No reino de sonho da morte
Estes não aparecem:
Lá, os olhos são como a lâmina
Do sol nos ossos de uma coluna
Lá, uma árvore brande os ramos
E as vozes estão no frêmito
Do vento que está cantando
Mais distantes e solenes
Que uma estrela agonizante.

Que eu demais não me aproxime
Do reino de sonho da morte
Que eu possa trajar ainda
Esses tácitos disfarces
Pele de rato, plumas de corvo, estacas cruzadas
E comportar-me num campo
Como o vento se comporta
Nem mais um passo

- Não este encontro derradeiro
No reino crepuscular

III

Esta é a terra morta
Esta é a terra do cacto
Aqui as imagens de pedra
Estão eretas, aqui recebem elas
A súplica da mão de um morto
Sob o lampejo de uma estrela agonizante.

E nisto consiste
O outro reino da morte:
Despertando sozinhos
À hora em que estamos
Trêmulos de ternura
Os lábios que beijariam
Rezam as pedras quebradas.

IV

Os olhos não estão aqui
Aqui os olhos não brilham
Neste vale de estrelas tíbias
Neste vale desvalido
Esta mandíbula em ruínas de nossos reinos perdidos

Neste último sítio de encontros
Juntos tateamos
Todos à fala esquivos
Reunidos na praia do túrgido rio

Sem nada ver, a não ser
Que os olhos reapareçam
Como a estrela perpétua
Rosa multifoliada
Do reino em sombras da morte
A única esperança
De homens vazios.

V

Aqui rondamos a figueira-brava
Figueira-brava figueira-brava
Aqui rondamos a figueira-brava
Às cinco em ponto da madrugada

Entre a idéia
E a realidade
Entre o movimento
E a ação
Tomba a Sombra
Porque Teu é o Reino

Entre a concepção
E a criação
Entre a emoção
E a reação
Tomba a Sombra
A vida é muito longa

Entre o desejo
E o espasmo
Entre a potência
E a existência
Entre a essência
E a descendência
Tomba a Sombra
Porque Teu é o Reino
Porque Teu é
A vida é
Porque Teu é o

Assim expira o mundo
Assim expira o mundo
Assim expira o mundo
Não com uma explosão, mas com um suspiro.

(tradução: Ivan Junqueira)

7 de março de 2010

Atoms for Peace

O grande Tom Yorke decidiu dar um gás em sua carreira solo. Formou um grupo chamado Atoms for Peace (nome de uma das músicas de seu álbum solo The Eraser de 2006) com o baixista Flea (Red Hot Chili Peppers), o baterista Jay Waronker (que já tocou no R.E.M.), o multiinstrumentista brasileiro Mauro Refosco (Forro in the Dark) e o produtor Nigel Godrich, que já trabalhou com Radiohead e Beck. A principio eles estão por aí se divertindo, tocando as músicas do The Eraser. Mas o que realmente é digno de nota é que o Tom está compondo algumas músicas novas, e não custa lembrar que o Radiohead esteve no fim do ano passado em estúdio, preparando um álbum novo. É uma prática comum do Tom Yorke, testar e apresentar músicas que futuramente farão parte do repertorio do Radiohead.Só nos resta aguardar e aproveitar, essa reunião de talentosos músicos. E saber que Tom ainda está em forma como prova a bela, Lotus Flower.



PS: Eu tinha prometido escrever sobre a minha visão de como foi o Show do Coldplay na apoteose, mas fiquei com preguiça. Até porque já disseram muito do que ia dizer.


1 de março de 2010

Solidão povoada! O novo espírito do Rock no show do Coldplay!

Podemos dizer que hoje, início de século XXI, o conceito de festa, entendido como fenômeno coletivo de comemoração e compartilhamento de experiências comuns, cuja finalidade é atingir a catarse coletiva, está seriamente ameaçada.

Cada vez mais, as pessoas assistem a seus espetáculos como espectadores frios e distantes, "mônadas" isoladas em suas ilhas digitais, preocupados em registrar através de suas câmeras e celulares cada vez mais modernos, cada detalhe do show, buscando mesmo que inconscientemente, a eternização do momento, porém, sem nunca atingir o clímax. É o que chamo de "condição de Nosferatu".

Afinal, o que representa a figura desse macabro, porém intrigante personagem, que no cinema nos foi mostrado em duas grandes filmagens, a primeira um clássico do expressionismo alemão de Murnau e a segunda, uma refilmagem de Herzog, com atuação magistral de Klaus Kisnski.

Nosferatu representa o tédio da imortalidade. Um vampiro condenado a viver as angústias de uma vida marcada pela falta de todas as perspectivas, nem mesmo a morte é tida como uma! Uma vida vazia, sem finalidades transcendentes. Uma vida guiada pelo simples viver e não pelo ideal de beleza do "viver bem".

Hoje tentamos através da biotecnologia e da tecnociência alcançarmos a tão sonhada imortalidade, ou pelo menos, o prolongamento máximo de nossa vida. Porém, extremamente individualistas como estamos, acabamos, assim como Nosferatu, vivendo por viver, viver mais e sempre mais porque simplesmente a vida não tem sentido e a morte muito menos! Afinal, o viver bem significa o compartilhamento coletivo de experiências comuns e ideais.

O rock n roll sempre foi um exemplo de busca pela catarse coletiva, impulsionada por uma série de contestações, seja no plano comportamental, estético, político, econômico, sexual e moral. O seu motor sempre foi alguma indignação. Ia-se num show de rock buscando atingir o clímax, compartilhando com os outros a potência e a fúria subversiva que a música proporcionava. Buscava-se encontrar no artista e na multidão de anônimos, os ecos para as suas angústias, raivas e amores. Buscava alguém que entendesse o que você sentia, pois também sentia o mesmo. Afinal, a vida não é dominada por um estado perene de algum sentimento, como uma eterna alegria. A indignação é o motor das transformações!

Os exemplos são muitos, desde os antológicos shows do Doors, uma espécie de ritual xamânico liderado por Jim Morrison, o ritmo contagiante dos Stones, o Woodstock com a guitarra mágica de Hendrix e a alma na voz de Joplin e o The Who quebrando tudo em seus shows. Depois vieram os espetáculos de Led Zeppelin e Pink Floyd. A música em si já era uma experiência coletiva, pois você comprava um vinil e reunia os amigos para escutá-lo pela primeira vez.
Veio o punk e o pós-punk e os shows lotados de pessoas munidas de sentimentos verdadeiros, proletários, filhos de proletários, desempregados, filhos da classe média sem futuro. The Kids aren´t all Right! As pessoas se odiavam para depois se amar. Veio o metal e o Hard rock e o bicho continuou pegando. O início dos anos 90 trouxe o Grunge e com ele a denúncia de que as crianças continuavam mal. Veio o Britrock, menos político, porém conservando o espírito e a alma do bom e velho rock n roll, ou seja, pessoas que amavam aquilo que escutavam!

Ontem, depois do show do Coldplay, minha banda favorita na atualidade, rodeado de pessoas ricas, brancas e bem vestidas, estando preso e apertado para dar conforto aos VIPs, percebi que o espírito do rock está enfraquecendo.
Hoje, vai-se a um show de rock tão blasé, quanto se vai a um shopping center comprar uma camisa!
Ninguém interage com ninguém e todos se preocupam em registrar isoladamente em suas "memórias artificiais" cada passo do artista no palco, matando com isso o que há de mais grandioso numa celebração que é a catarse oriunda do compartilhamento das mesmas experiências coletivas. Como esquecer do primeiro show de rock, dos primeiros festivais independentes, das primeiras “rodas”? Não é preciso máquina digital para me fazer lembrar desses momentos, assim como não é preciso máquina nenhuma para me fazer lembrar da primeira vez que entrei no Maracanã e vi impávido, 100 mil pessoas gritando!
O homem de hoje, refém incondicional das memórias artificiais, não percebe que enquanto maneja suas máquinas perde o momento natural da passagem do tempo e enfraquece sua memória natural, sua percepção do mundo real. Será que no futuro teremos memória natural?
No final, o show passou e não mudou a vida de ninguém. Todos voltaram calados para suas casas, ligaram seus computadores e disponibilizaram para o mundo inteiro seus vídeos e fotos.
Por fim, registramos tudo, cada detalhe, cada minuto e cada segundo do show em nossas memórias artificiais, porém, assim como um Nosferatu eternizado, estivemos o tempo todo, sozinhos, muito sozinhos!